quarta-feira, 3 de abril de 2013

A beleza da vocação cristã


A beleza da vocação cristã 
segundo uma Carta Pastoral de Dom António Marto da Diocese Leiria-Fátima, Portugal

1. “E Deus viu que tudo era muito belo” (Gen 1,31): Toda a vida é vocação
Quando contemplamos a nossa vida à luz da fé no mistério da Criação, tomamos consciência de que “não somos o produto do acaso irracional e sem sentido da evolução. Cada um de nós é fruto dum pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um é amado, cada um é necessário.” (Bento XVI) O amor criador de Deus é o início de cada vocação. Ele cria-nos com dons, talentos e capacidades que somos chamados a desenvolver para a nossa realização pessoal e para o aperfeiçoamento do mundo. Chama-nos a colaborar com Ele no projecto criador e salvador, para tornar o mundo bom e belo.
A vida humana não é pois um acaso nem um destino cego. É uma obra-prima do amor criador de Deus e traz inscrito dentro, em si mesma, um chamamento ao amor. Não é uma aventura solitária, mas diálogo, dom de Deus que se torna tarefa e missão para nós. Não vivemos ao acaso nem por acaso. O homem não está só no mundo: nem no princípio, nem no meio, nem no fim da vida e da história. Deus é o seu companheiro de caminho e este caminho abre à vida verdadeira e plena, boa, bela e feliz. Cada dia é-nos dado para responder à nossa vocação de criaturas de Deus, como um modo de conceber e projectar a nossa vida. Em cada pessoa há um dom original de Deus que espera ser descoberto, desenvolvido para dar frutos. A busca do sentido da vida é um eco da “vocação” de Deus.

2. “Fala, Senhor; o teu servo escuta” (1Sam 3,10):  A vocação como diálogo
Mas Deus chama o homem não só à vida e ao seu desenvolvimento; chama-o também, de novo e sempre, na sua história a colaborar com Ele numa história de salvação e não de perdição, de graça e não de desgraça, formando um povo que acolhe o dom da salvação. O povo de Deus – outrora Israel, hoje a Igreja – é um povo de chamados à fé e à salvação, a responder e corresponder à Palavra do Senhor.
A história de Deus com os homens é uma história de vocações. Através da sua Palavra, Deus chama e envia alguns (patriarcas, profetas…) a realizar determinada missão. Uma amostra exemplar é a vocação de Abraão, a quem Deus chamou para dar início à história particular da salvação, formando um povo, e a confiar somente na Palavra, acolhida na fé e na esperança. Quando Deus chama, espera uma resposta. Isto é claro na vocação de Samuel (1Sam 3), que responde com a sua disponibilidade pronta: “Eis-me aqui. Fala, Senhor, que o teu servo escuta”. Assim a história de cada homem, embora nos apareça como uma pequena história, é sempre parte integrante e inconfundível duma grande história da salvação, que vem de longe e leva longe e que tem o seu momento culminante em Jesus Cristo.

3. “Vinde e vede” (Jo 1,39): A vocação como encontro com Cristo
De facto, em Jesus, Filho de Deus feito homem, o Deus vivo, no excesso do Seu amor, entra em pessoa na nossa história, vem ao nosso encontro, aproxima-se de nós, torna-se nosso amigo, partilha connosco o mistério do Seu amor, para que tenhamos vida em abundância, vida verdadeira, nova e eterna. Jesus traz-nos a Boa-Nova de que somos amados por Deus como filhos; e dá-nos o Espírito Santo no qual podemos acolher Deus como Pai e os outros como irmãos. O Filho é enviado pelo Pai para chamar os homens a esta comunhão divina e fraterna. O convite de Deus chega até aos homens nas palavras, nos gestos, nos sinais de salvação de Jesus. Não é uma fórmula ou uma doutrina que nos salva, mas a Pessoa viva de Jesus.
Por isso, não existe uma passagem do Evangelho, um diálogo ou encontro que não tenha um significado vocacional: um convite¬ – chamamento de Jesus a segui-Lo, que põe o homem diante da interrogação fundamental: que quero fazer da minha vida? Qual o meu caminho?
É verdadeiramente iluminante a narração da vocação dos primeiros discípulos de Jesus no Evangelho segundo S. João 1, 35-39. O amor divino é o acontecimento de um encontro que muda a vida, a experiência de uma hora inesquecível que revive, de novo e sempre, no coração de quem aceita entregar-se a este amor em Jesus.
Quando João Baptista indica Jesus como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – isto é, como Salvador do mundo –, os dois (João e André) não hesitaram em segui-l’O, sem dizer nada. E Jesus faz-lhes uma única pergunta: “Que procurais?” Pode parecer uma pergunta banal, mas ela vai ao fundo da pessoa, como quem diz: o que vos move? Que anseios estão no interior do vosso coração? De que andais à procura na vida? Que vos interessa acima de tudo? E que esperais de Mim? É pois uma pergunta cheia de sentido, um convite a olhar-se dentro, a advertir o que há de mais profundo em nós.
Por sua vez, eles respondem com outra pergunta: “onde moras?” que exprime o desejo de ficar com Ele. Morando juntos, convivemos, compreendemo-nos, partilhamos algo em comum, sentimo-nos da família. Eles compreenderam pois que seguir Jesus é encontrar a verdadeira morada da própria vida. A resposta do Mestre é um convite a confiar e a fazer uma experiência de vida com Ele: “vinde e vede”. E assim fizeram. É tão grande a impressão daquele encontro que vai marcar para sempre a sua vida, que S. João recorda a hora precisa, típico da memória de um grande amor: “era a hora décima” que, para os hebreus, significava a hora das grandes decisões da vida. A vocação é o encontro com Alguém, não com alguma coisa; é a recordação de uma hora que muda a vida quando se aceita estar com Ele e viver d’Ele, reconhecendo-O como “meu Senhor e meu Deus”. “O encontro com Jesus abre um novo horizonte e imprime um rumo decisivo à vida” (Bento XVI), dá origem a uma existência nova na comunhão com Cristo.

4. “É belo estarmos aqui” (Mat 17,4):  A vocação como vida bela em Cristo
A vida em comunhão com Cristo é uma experiência de beleza a saborear e a testemunhar, tal como nos é dado contemplar no mistério da Transfiguração de Jesus, no monte Tabor. É um episódio misterioso, um acontecimento de revelação em que o Filho de Deus vivo deixa transparecer a profundidade da Sua vida divina, do Seu Amor eterno, da Sua bondade que irradia em forma de luz tão intensa que transfigura o Seu rosto – expressão da pessoa – e as Suas vestes, símbolo de tudo o que é quotidiano e se desgasta. Uma experiência tão maravilhosa que extasia os discípulos e leva Pedro a exclamar: “Senhor, como é belo estarmos aqui”: é belo estar contigo, contemplar a beleza do Teu rosto, pertencer a Ti, dedicarmo-nos a Ti!
E depois escutam a voz do Pai que ilumina este acontecimento: “Este é o meu Filho muito amado: escutai-O”. É o chamamento do Pai a seguir Jesus: recebei-O, acolhei-O, ponde n’Ele toda a confiança, fazei d’Ele o centro da vida, deixai-vos transfigurar por Ele.
A Igreja vê na Transfiguração de Jesus o próprio caminho de transformação da existência humana. Para o cristão, é sinal e apelo da transformação baptismal: um convite a dar nova figura, novo rosto, nova beleza à vida com Cristo que nos é comunicada no Baptismo. O Baptismo é pois o início de todo o caminho cristão para ser filhos de Deus como Jesus. Por isso dizemos que a primeira e fundamental vocação comum a todos os cristãos é a baptismal. Nela somos chamados à santidade que é a expressão da beleza espiritual e moral da nossa vida com Cristo. Ser cristão é um modo belo de viver a vida!

5. “Fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16): A vocação como eleição de amor
Há ainda uma palavra muito bela de Jesus, em que Ele desvela o segredo e o sentido mais profundo e último da vocação cristã: “não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos constituí para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça”. Esta frase é pronunciada num contexto em que Jesus como que entoa uma cantata ao Amor infinito do Pai dado a conhecer e partilhado pelos discípulos. E assim coloca o chamamento dos discípulos no coração do mistério, isto é, no desígnio do Amor eterno de Deus, que nos precede e acompanha, ao qual respondemos pela aceitação da fé. Sem negar a opção pessoal dos discípulos, sublinha-se o primado da iniciativa de Cristo, reconhecido como Senhor da nossa vida. Na origem da vocação cristã está a iniciativa da Sua graça, do Seu amor, da Sua misericórdia, da Sua atracção. Há um Amor que está antes da nossa resposta. A vocação aparece então como um dom, uma eleição de Amor.
Esta eleição não é só para eles, mas para a missão: “para que deis fruto”, para que através da irradiação da fé e do amor os homens tenham a vida eterna. Através da comunidade dos discípulos, o Filho de Deus continuará a revelar-Se e a comunicar-Se ao longo da história. A nossa vocação tem como horizonte o mundo inteiro. O chamamento do Senhor é pessoal e apostólico.

 Vocação e vocações na Igreja

Tudo o que foi dito refere-se à vocação comum a todos os cristãos. O nosso ser com Cristo pelo Baptismo insere-nos na comunhão de vida íntima com Deus e na comunhão de irmãos que é a Igreja. No Baptismo está pois a origem da vocação comum de todos os fiéis cristãos. Todos somos chamados a viver a nossa existência humana em comunhão com Cristo: a crescer na relação filial com Deus, no amor fraterno, na vida nova segundo o Espírito de santidade, a participar na edificação da Igreja, a anunciar e testemunhar o Evangelho no mundo. É uma vocação em ordem a realizar uma vida boa, bela e feliz com Cristo e com os outros para o mundo.

1. Variedade de dons e chamamentos
A vocação cristã, porém, especifica-se numa multiforme variedade. Todos os baptizados são alcançados pela luz da Transfiguração, pela beleza da vida nova, todos igualmente chamados a seguir o mesmo Cristo; mas cada um, de um modo próprio, segundo os dons e os apelos de Deus nas diversas situações.
O Espírito Santo alimenta a vida e a missão da Igreja com dons, carismas e ministérios diversos e complementares, que se configuram numa grande variedade de vocações. Podemos sintetizá-las em três tipos: a vocação à vida laical, ao ministério ordenado e à vida consagrada. Estas “podem-se considerar paradigmáticas, uma vez que todas as vocações particulares, sob um aspecto ou outro, se inspiram ou conduzem àquelas… Todos na Igreja somos consagrados no Baptismo e na Confirmação; mas o ministério ordenado e a vida consagrada supõem, cada qual, uma vocação distinta e uma forma específica de consagração, com vista a uma missão particular” (VC 31).
Assim, a vocação dos fiéis leigos é caracterizada pelo seu compromisso cristão no mundo: na vida matrimonial, na família, no trabalho, na economia, na política, na educação…; a dos ministros ordenados (bispos, padres e diáconos) distingue-se pelo ministério de representar Cristo, Pastor que guia o Seu povo; a dos consagrados consiste na entrega total, de alma, coração e sentimentos, a Jesus Cristo, pelo caminho da pobreza, da virgindade e da obediência como testemunho profético e serviço ao Reino de Deus no mundo e à esperança do mundo novo, em que quem reina é o Deus – Amor.
As diversas vocações são comparáveis a raios da única luz da Beleza de Cristo que resplandece no rosto da Igreja e fazem dela um jardim embelezado com as mais diversas flores.
Cada vocação nasce num contexto preciso e concreto: a Igreja, mãe e berço de vocações. Não existem vocações de primeira ou segunda categoria. Todas vêm de Deus e têm um único objectivo: anunciar o reino de Deus na história, tornar visível e testemunhar o mistério de Cristo Salvador. Numa palavra, na comunidade cristã há muitas vocações, mas uma única missão.

2. Necessidade urgente de sacerdotes e consagrados
Todas as vocações colaboram na edificação da Igreja, Corpo de Cristo, e na obra de salvação. Mas hoje sente-se uma necessidade urgente de ministros ordenados e de fiéis de vida consagrada. Os sacerdotes, na continuidade do ministério dos Apóstolos, servem, em nome de Cristo Pastor, a fé, o amor e a esperança de todos os fiéis e das comunidades cristãs, através do anúncio da Palavra de Deus, da celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos, e da orientação da comunidade na comunhão fraterna.
Os fiéis de vida consagrada, movidos pelo Espírito Santo, tendem à perfeição da caridade seguindo radicalmente a Cristo mediante os chamados “conselhos evangélicos”, dando testemunho daquele Amor único que é Deus e do serviço aos irmãos em variadas expressões. São uma riqueza inestimável para a vitalidade da Igreja!
A atenção prioritária, na actual situação da nossa diocese, vai sobretudo para o ministério ordenado. Ele é a garantia permanente da presença sacramental de Cristo nos diversos tempos e lugares, sobretudo através da Eucaristia. É pois fundamental e indispensável para a vida da Igreja, da sua edificação e do seu crescimento!
Neste contexto, não há dúvida de que deve ser reservada hoje uma singular e específica atenção às vocações sacerdotais. Trata-se de “um problema vital para o futuro da fé cristã”, como dizia João Paulo II. Sem vocações ao sacerdócio será mais difícil o serviço ao Evangelho e não será possível uma renovada evangelização da nossa Igreja e do nosso território.

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